sexta-feira, 14 de março de 2014

BALSAS DE GARIMPO VIRAM ABRIGO PARA ATINGIDOS DA CHEIA DO MADEIRA



Na maioria das comunidades inundadas, há famílias inteiras que preferem permanecer morando em balsas de garimpo, dentro de batelões e sobre estrados de madeira (maromba) construídos dentro das casas inundadas a poucos centímetros do nível da água.
Na região do Baixo-Madeira, área de várzea mais atingida pela cheia histórica do principal tributário da margem direita do rio Amazonas, há dezenas de famílias morando em balsas de garimpo, batelões – barcos típicos da região - e abrigos improvisados pela própria comunidade.

A disposição em ajudar uns aos outros uniu católicos, evangélicos, entidades como a Defesa Civil e um grupo de garimpeiros. Com a suspensão das atividades de extração de ouro de aluvião (em pó) no leito do rio, por causa da grande profundidade das águas, homens como o “Ceará” lideram um movimento para ceder as balsas de garimpo às famílias interessadas em continuar morando próximo às antigas casas, com medo de serem roubadas pelos chamados “ratos d’água”. “É o nosso jeito de ajudar na hora do sofrimento dessas pessoas”, disse ele, preferindo se identificar apenas pelo apelido.

Na maioria das comunidades inundadas, há famílias inteiras que preferem permanecer morando em balsas de garimpo, dentro de batelões e sobre estrados de madeira (maromba) construídos dentro das casas inundadas a poucos centímetros do nível da água. O pescador Thaumaturgo Ferreira Brito, 63 anos, é um dos cerca de 12 mil flagelados pelas enchentes em Rondônia. Separado da família, dorme há mais de um mês sobre um colchão protegido apenas por uma grade de madeira a poucos centímetros do nível da água, uma espécie de presa fácil para ataques de jacarés e cobras que migraram do lago do Cuniã para a margem alagada do rio Madeira. “Nunca tinha visto uma cheia tão grande como esta”, diz Brito, em tom de desilusão por ter perdido toda a produção da banana e mandioca e de ainda correr o risco de perder a casa por causa da correnteza.


Disposto a não sair em busca de abrigo na casa dos filhos na capital, ele prefere contrariar as orientações da Defesa Civil para também não incomodar os familiares que têm hábitos e costumes diferentes dos seus. “Não posso deixar minhas coisas para trás. Mas quando o rio vazar, se eu não tiver condições de recomeçar aqui mesmo, vou para o Amazonas em busca de terra mais segura”, disse ao estender a mão e se despedir.

Grande parte dos desabrigados foi transferida pela Defesa Civil para ginásios de esporte, salas de aula das escolas públicas das redes municipal e estadual, salões paroquiais como o do bairro São Francisco, em Calama, ou ainda acampamentos montados nas poucas áreas de terra ainda não atingidas com as barracas distribuídas pela Defesa Civil Nacional nas proximidades de São Carlos, Nazaré e Calama.

Jucelena Miranda é uma das sete famílias abrigadas na escola municipal Drª Ana Adelaide Granjeiro, em Calama. Muito tensa, após constatar que a correnteza quebrou todas as paredes de tábua e destruiu o telhado da sua casa no bairro São Francisco, ela reclamou da falta de distribuição regular de água mineral e da pouca quantidade de gêneros alimentícios da cesta básica, entregues a cada 15 dias às famílias. “Onde, por exemplo, eu vou conseguir sobreviver a metade de um mês com 2 k de açúcar e 250 gramas de pó de café?”, frisou.

No início da semana, a Defesa Civil, que mantém três barcos grandes e voadeiras de apoio às comunidades do Baixo-Madeira, recebeu mais 294 fardos de água mineral com seis galões cada para distribuição aos desabrigados cadastrados. Junto com mais 25 tendas cedidas pela coordenação Nacional para ampliação dos acampamentos em “Terra Firme” e Demarcação, e o abrigo da escola estadual de Calama, General Osório, as equipes locais distribuíram quinta-feira última 350 cestas básicas e receberam na terça-feira mais 300.

Cultura local

A cultura dos ribeirinhos incorporou outros hábitos e costumes e rechaça o rótulo de desabrigado. Muito religiosos e com uma forte ligação em tudo o que o fazem com o rio terminam desobedecendo, mesmo em situação de risco, às orientações das equipes da Defesa Civil. Um dos exemplos é a improvisação de moradias em cima de balsas de garimpos, dentro de batelões e em marombas dentro das casas parcialmente inundadas.


Na comunidade de Papagaio, os desabrigados se reuniram e abriram uma trilha com extensão de 1 hora de canoa por entre as árvores para transportar da área inundada para terra firme o pouco que conseguiram retirar de dentro de casa. Por esse caminho, transitável apenas em canoas com “motor rabeta”, os flagelados ainda conseguiram retirar e guardarem acampamento improvisado as geladeiras, fogões, freezer, televisão, aparelhos de som e outros objetos.

O aposentado Raimundo Rodrigues de Araújo, 71 anos, estava ansioso para chegar logo à comunidade de Papagaio, de onde saiu em busca de abrigo na casa de familiares na capital. Contava os minutos para ver se a casa inundada não tinha sido totalmente destruída pela correnteza do rio. Mas foi obrigado a esperar o dono de uma voadeira no flutuante de São Carlos para prosseguir viagem.

A bordo, ele contou que o número de desabrigados é bem maior do que os 10 mil divulgados pela mídia e admite que a divulgação constante de notícias sobre mais enchente espalha o medo e a desilusão entre os ribeirinhos. Para salvar a criação de aves ele improvisou um galinheiro flutuante, mas com o transbordamento do lago do Cuniã, segundo ele, o jacaré já devia ter comido as 39 galinhas, pois a água estava a poucos centímetros do assoalho da pequena maromba.


A desilusão de quem perdeu tudo

Desanimado com os prejuízos que não consegue nem contabilizar, o homem ribeirinho revela toda a sua desilusão com o flagelo da maior cheia do rio Madeira. Muito religioso, chega a implorar pela clemência de Deus para fazer o rio vazar e, principalmente, para que os agricultores possam recomeçar a vida e voltar a plantar. Outros culpam a construção das duas usinas e possíveis erros nos estudos de impacto ambiental pelo drama que estão vivendo e cobram das autoridades em todos os níveis governamentais providências para que não fiquem sem trabalho.

Osvaldino da Silva não tem dúvidas: foram os erros no passado dos estudos de impacto ambiental para construção das duas usinas no rio Madeira. As hidrelétricas ainda irão prejudicar muito mais a população ribeirinha. Segundo ele, vem aí o assoreamento de todo o trecho da parte baixa do rio, como já aconteceu no verão passado, na desembocadura do rio Jamari – afluente do rio Madeira – “onde só passava canoa e a gente conseguia ver a areia no fundo do rio”, lembrou. 


Valdomiro Ferreira da Silva, 64 anos, pediu um batelão emprestado de um amigo e mora dentro do barco há dois meses, próximo à comunidade de Santo Antônio do Amparo. É mais um ribeirinho que perdeu toda a plantação com as enchentes e não sabe ainda como recomeçar. “Só eu perdi 600 pés de bananeira, 6 mil pés de mandioca e um plantio (roçado) com 10 k de milho plantados. Era minha fonte de renda”.

Prejuízo incalculável

O prejuízo com a cheia histórica do nível do rio Madeira chega a ser “desanimador”, admitem entre si vários passageiros do barco “Caçote”, com capacidade para 60 pessoas e que realiza duas viagens por semana a Calama, último distrito de Porto Velho, na divisa com Humaitá (AM).


Proprietários da embarcação também começam a contabilizar os prejuízos da cheia, com a redução do número de passageiros e no transporte de produtos agrícolas. Poucos são os embarques de produtos como açaí e côco verde, em comparação com aos grandes carregamentos de mandioca, melancia, cupuaçu, laranja, banana e farinha antes da cheia. A expectativa, no entanto, é de que aumente o transporte de peixe, principalmente jaraqui e jatuarana que iniciou o período da “piracema” com a migração das áreas alagadas para o rio.

Pelos cálculos da comerciante Maria Edite Ferreira dos Santos, proprietária de um mini mercado no bairro São Francisco, em Calama, e do clube local, houve uma queda de 60% nas vendas. “Não estou mais nem fazendo novas encomendas de Porto Velho, porque o movimento caiu muito”, acrescentou: “sem contar com a falta de energia para manutenção dos produtos congelados”.


Os postos de saúde da rede básica, escolas, ginásios de esporte e outros prédios públicos, bem como os serviços de telefonia, abastecimento d’água e de energia não funcionam e os prejuízos, somente no entorno do município de Porto Velho, podem alcançar R$ 900 milhões. Não foram incluídos nesses cálculos, o valor médio de uma moradia com pouca benfeitoria na área ribeirinha.

Valor da moradia

De acordo com Raimundo Ferreira Ramos, 73 anos,o valor médio de uma casa em “Ilha Nova” onde mora há anos é de cerca de R$ 50 mil. Mas depende muito das benfeitorias, como é o caso da sua que tinha 10.000 covas de mandioca plantada e era bem melhor avaliada. “Agora tudo está no fundo. Quando o rio baixar, vou procurar uma área mais alta para reiniciar a vida. Só depois mudarei para lá”


O ribeirinho José Sodré, 49 anos, acolhido no Centro Catequético de Calama, lamenta que a maioria das pessoas esteja na eminência de perder suas casas e o trabalho, fatores que têm afetado a estima dos flagelados. Ele defende a concessão de auxílio temporário alimentação, pois estão sem a fonte de renda gerada pela comercialização da banana e do pescado, já que também perderam os equipamentos de pesca.

A moradora de Santa Catarina, técnica em enfermagem Doriana Nobre, considera inaceitável os atrasos na distribuição de água mineral e das cestas básicas aos flagelados. Principalmente o fato de não estarem cadastrando todas as famílias atingidas. “Eu acho que ao invés de abrigo, o governo deveria era conceder uma espécie de auxílio aluguel e moradia, As pessoas ficariam muito mais satisfeitas”.

Maior índice de abrigados em balsas

As comunidades com maior índice de famílias morando em pequenas balsas flutuantes e dentro de batelões são as localidades de Santa Catarina, Papagaio e Calama. Mas em toda a extensão da zona ribeirinha é possível ver até cinco famílias dividindo o mesmo espaço, com no máximo 8 metros quadrados.



Em Santa Catarina, segundo Osvaldino Soares da Silva, 71 anos, moravam na comunidade 41 famílias. Com a cheia, a maioria decidiu abrir um caminho de 1 hora de canoa na mata até alcançar área mais segura para instalar um acampamento onde foi abrigada a maioria das pessoas. “Mas uma boa parte está morando em cima de balsa de garimpo”, disse.

“Ceará”, um dos garimpeiros que ganha a vida com a extração de ouro de aluvião nas proximidades da comunidade Papagaio, explicou que, se não fosse a solidariedade dos garimpeiros que emprestam suas balsas para ajudar às vítimas da enchente, o problema estaria muito mais grave. “Nós preferimos emprestar nossas balsas porque há muitas famílias que não querem deixar para trás o pouco que ainda lhes resta”.

Reportagem: Abdoral Cardoso
Fotos: Marcos Freire

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